Conteúdo, prática
didático-pedagógica ou o terceiro caminho na formação de professores no Brasil
Cicinato Azevedo do Carmo
SAVIANI, Dermeval. Formação de professores: aspectos históricos e
teóricos do problema no contexto brasileiro. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 14, n. 40, p.
143-155, jan./abr. 2009. Disponível em: < http://bit.ly/1Ab0O7W>. Acesso em: 12 nov.
2014.
A
formação docente é matéria de política pública e tema recorrente nas pesquisas
acadêmicas no Brasil, exigindo respostas que se aproximem das diversas realidades
educacionais encontradas no país. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9.394/96) regulamentou, após alteração ao texto original pela Lei
12.014/09, os fundamentos da formação dos profissionais da educação em três
pilares: sólida formação nos conhecimentos científicos e sociais necessários
para o exercício da profissão, associação entre teoria e prática e
aproveitamento de experiências adquiridas em instituições de ensino e outras
atividades. A regulamentação da formação docente nos moldes propostos, no
entanto, não solucionou o dilema histórico dos cursos de licenciatura e de
Pedagogia no Brasil, a saber: formação com foco no conteúdo disciplinar
específico com pouco espaço para os aspectos didático-pedagógicos (Gatti: 2010)
ou formação com ênfase na prática docente e esvaziada de conhecimento geral e
específico.
O dilema
instaurado entre conteúdo e forma, ou seja, entre uma formação conteudista e uma
formação prática, é explorado por Dermeval Saviani no artigo Formação de professores: aspectos históricos
e teóricos do problema no contexto brasileiro (2009). Neste texto, Saviani
faz um percurso pela história, indo do Brasil Império até as políticas
neoliberais do governo Fernando Henrique Cardoso, e situa o problema da formação
de professores nas esferas da política educacional nacional e dos modelos de
formação docente adotados. A partir desta contextualização, o autor propõe a
superação deste dilema e aponta um “caminho prático e objetivo” que recuperaria
a ligação intrínseca ao ato docente entre a forma e o conteúdo nos cursos de
formação de professores. Ainda sobre este assunto, Saviani discorre sobre a
formação de professores para a Educação Especial dentro do contexto educacional
instaurado pós-LDB 9.394/96, em particular, após a promulgação das resoluções
CNE/CEB n. 17/2001 e CNE/CP 1/2006.
Resultado
de um trabalho apresentado na 31ª. Reunião Anual da ANPEd, em 2008, o artigo
inicia-se traçando as origens da institucionalização da formação docente na
França no último decênio do século dezoito com a criação da Escola Normal e da
Escola Normal Superior. Esta última formava professores para atuar no ensino
secundário e transformou-se, de fato, em uma instituição de estudos superiores,
desvinculando-se das preocupações didático-pedagógicas intrínsecas ao ato
docente. O modelo francês normalista de formação de professores seria adotado
por diversos países da Europa e também pelo Brasil de D. Pedro II.
Após
situar os aspectos históricos da formação de professores, Saviani debruça-se sobre
contexto brasileiro e identifica seis períodos distintos de política
educacional voltada para a questão da formação docente. O primeiro destes
períodos é, na realidade, um momento de tentativas de institucionalização da
formação docente. Este momento foi, inicialmente, marcado pela promulgação da Lei
das Escolas de Primeiras Letras (1827) e, sete anos mais tarde, pelo Ato
Adicional, que tornou a instrução primária responsabilidade das províncias,
possibilitando, assim, a criação das primeiras Escolas Normais no país. Estas,
no entanto, não gozavam de estabilidade institucional e dependiam dos
interesses políticos provinciais para a sua manutenção. Quanto aos seus fins,
as Escolas Normais visavam à formação de professores para o ensino primário e,
embora suas orientações fossem para as preocupações didático-pedagógicas, a
formação de seus professores era baseada, na prática, na aquisição dos conhecimentos
gerais e específicos. Nesta separação entre a forma e o conteúdo reside o
problema na formação de professores no Brasil.
O
período subsequente vê o estabelecimento e a expansão das Escolas Normais no
país. A reforma da instrução pública no estado de São Paulo, regulamentada com
a publicação do decreto n. 27, de 12 de março de 1890, apresentou uma preocupação
com a formação de professores bem preparados para o exercício da profissão,
determinando que ela deveria basear-se no enriquecimento dos conteúdos
curriculares e nos exercícios práticos de ensino. Embora apontasse para a
necessidade de uma ênfase nas questões didático-pedagógicas, a sua realização adotou
um caráter conteudista, de sobreposição da cultura geral e conhecimentos
específicos em relação às práticas de sala de aula. Na tentativa de superar
esta deficiência, Anísio Teixeira implantou, em 1932, o primeiro Instituto de
Educação do Rio de Janeiro, reorganizando o Ensino Normal e transpondo-o para o
plano universitário. Tal modificação visava a superar as limitações do modelo
anterior e fornecer uma formação adequada de professores para o ensino primário
e secundário por meio de um sólido preparo cultural e técnico, orientado para a
formação profissional. Nas palavras de Saviani (2009:146) “Caminhava-se, pois,
decisivamente rumo à consolidação do modelo pedagógico-didático de formação
docente”. Contudo, a elevação dos institutos de educação ao nível universitário
e a organização dos cursos de licenciatura e de Pedagogia, em 1939, implicaram
em um distanciamento das práticas pedagógicas na formação profissional docente.
Mais uma vez, a política educacional do país atribuiu um caráter secundário à
formação em sala de aula e reforçou a predominância dos conteúdos
culturais-cognitivos. Os dois períodos subsequentes, a substituição da Escola
Normal pela habilitação específica de Magistério em 1971, e a criação dos
Institutos Superiores de Educação e das Escolas Normais Superiores no ano de
1996, não equacionaram o problema da formação de professores no Brasil. Pelo
contrário, Saviani (2009:148) afirma que eles mantiveram a ênfase na formação
conteudista, nivelaram por baixo as políticas formativas e não conseguiram
estabelecer um padrão “minimamente consistente” que formasse professores
capazes de atuar nas diversas realidades escolares do país.
O
quadro histórico descrito por Saviani é ampliado pela distinção entre o modelo
de formação conteudista, orientado para a aquisição dos conhecimentos
disciplinares específicos e de cultura geral, e o modelo pedagógico-didático,
que visa ao preparo do professor para as situações cotidianas de sala de aula.
No Brasil, a universidade priorizou o primeiro modelo. Ela deixou a cargo das
diversas faculdades e institutos a formação específica profissional e a devida complementação
didático-pedagógica para as Faculdades de Educação.
Esta separação de
conhecimentos contribuiu para acentuar o dilema existente na formação de
professores. Como superar este dilema? Saviani aponta uma saída sem que a
estrutura atual seja modifica em sua base: o livro didático. Para ele, o livro
didático apontaria para a conciliação dos modelos atuais porque, de certa forma
e apesar das suas limitações, ele articula em si os conhecimentos disciplinares
especializados e as orientações didático-pedagógicas do ato docente. A análise
dos livros didáticos nos cursos de formação de professores permitiria
compreender a complexidade dos currículos escolares e a articulação entre a
forma e o conteúdo, servindo de ponto de partida para a reformulação dos cursos
de licenciatura e de Pedagogia. Saviani defende seu posicionamento ao afirmar
que é o livro didático “que, geralmente de forma acrítica, dá forma prática à
teoria pedagógica nas suas diferentes versões”, refletindo as mudanças teóricas
educacionais dos momentos históricos.
Se esta é uma
solução definitiva para Saviani? Certamente que não. Ele sugere ainda que
profissionais das Faculdades de Educação e das diversas unidades acadêmicas
organizem-se em grupos de ensino como forma de superar a compartimentalização
disciplinar e dar um novo formato aos cursos de licenciatura. Uma política nacional
de valorização do magistério com melhores condições de trabalho, melhores
salários e jornada de trabalho reduzida também são apontados como fatores de
superação do problema da formação de professores no país. Em sua defesa por uma
formação consistente, Saviani não deixa de fora a Educação Especial. Em suas
palavras, os decretos do Conselho Nacional de Educação n. CNE/CEB 17/2001 e
CNE/CP 1/2006 representaram um retrocesso ao secundarizar a questão dos alunos
com necessidades especiais no currículo dos cursos de Pedagogia. Para ele, é
urgente que seja criado um espaço específico para cuidar da formação dos
professores de Educação Especial ou esta modalidade continuará negligenciada na
prática. É mister, enfim, que a educação seja tratada em sua complexidade como
eixo de desenvolvimento nacional com professores mais bem formados e preparados
para lidar com a diversidade social de nosso país.
Referências:
GATTI, Bernardete A. Formação de
professores no Brasil: características e problemas. In: Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1355-1379,
out.-dez. 2010.
BRASIL,
Lei de Diretrizes e B. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996.